segunda-feira, dezembro 08, 2025

A Missão

 

A condição que me impuseram quando aceitei esta missão foi - aliás, não foi apenas uma mas duas condições - saber lidar e saber viver.

Descreveram-me muito bem o ambiente ao qual iria estar sujeito: a família de acolhimento (pais, etc.), os amigos, os conhecidos, os desafios, as valências, os amores, os desamores. Tudo isto eu tive conhecimento antes de "vestir o fato", digamos assim. Não era de todo aquilo que se possa chamara "uma missão fácil." Apenas aqueles que estão bem preparados e bem equipados podem aceitar esta Missão. 

A partir do momento em que eu pronunciei "Sim, eu aceito", os meus responsáveis trataram de apagar tudo aquilo que eu era, tudo aquilo que tinha vivido e experienciado até então. Esta seria a cláusula de ouro, a contrapartida. Seria uma nova Vida, uma nova Existência, com tudo aquilo de bom e de mau. Todas as minhas vidas anteriores seriam apagadas da minha memória. Poderia, eventualmente, vislumbrar ou sentir pedaços, pequenas insinuações de outras Vidas, mas seria muito ao de leve. Teria mestres e mentores ao meu dispor com os quais iria aprender a comunicar sempre que precisasse de "auxílio superior". Acumularia conhecimento e experiência para enfrentar as fases mais conturbadas da missão. Não é uma missão fácil. Seria bombardeado com emoções, sentimentos, crises e ganhos, mas poderia sempre de recorrer à minha Consciência e aos Mestres para enfrentar este miríade de vivências que - ao que parece - iria durar anos. 

So far, so good? 

 

quinta-feira, dezembro 04, 2025

Batucada na lavandaria

Sou envolvido pelo cheiro intenso a amaciador que vem de dentro de uma daquelas lavandarias de rua. É um aroma intenso, quase perfurante. Parece que todas as ruas da cidade têm agora uma. É claro que me remete sempre a videoclipes e filmes americanos. Os clientes são quase sempre jovens ou emigrantes. 

Deti-me um pouco na entrada, fingindo que estava a consultar o telemóvel e escutei a conversa animada de dois brasileiros. Com o seu sotaque suavizaram o som ritmado das máquinas de lavar e quase que dava para dançar quando falavam entre si sobre algo que não me pareceu muito interessante. 

Mas nasceu ali um tema bem ritmado e orelhudo ("pegada" como eles dizem) naquela lavandaria de rua. A melodia açucarada do diálogo combinada com batida sincopada das máquinas europeias.

"Nota deiz, veio".

terça-feira, dezembro 02, 2025

Imaginação

 




Sinto que a Imaginação é uma porta, um canal, um meio para atingir a felicidade, para a manifestação desejada profundamente pelo coração. Quando temos níveis elevados de Imaginação (Criatividade, se quiserem) que não são devidamente canalizados, tal pode dar origem a uma certa aridez de existência, ou até mesmo a dissociações. Infelizmente, sei do que falo.

Por outras palavras: alguns de nós nasceram com um dom, com uma apetência inata para fazer algo, para criar algo. Nada de novo aqui.

Mas se não "coisificarmos" esse dom, as consequências podem ser, digamos, nefastas para o sujeito. Estou a ser meigo com as palavras. Eu acredito piamente nisto. Uma boa parte de nós humanos foi concebida para gerar algo. 

Há sempre duas artistas - mulheres, neste caso - que me vêm sempre à cabeça (coração?) quando falo de Imaginação ou Criatividade. 

Gloria O'Keeffe e Leonora Carrington.  

Bastante diferentes no estilo, ambas são Criadoras puras, mágicas, divinas, que converteram o Nada em Arte. Identifico-me bastante com estas mulheres-feiticeiras e com tudo aquilo que geraram com as suas mãos, com o seu coração, com a vida que lhes foi proporcionada. 

Segue um excerto traduzido de que como Leonora acredita ter sido concebida:

"Num dia melancólico, a minha mãe, inchada por trufas de chocolate, puré de ostras e faisão frio, sentindo-se gorda, apática e indesejável, deitou-se em cima de uma máquina. A máquina era uma engenhoca maravilhosa, projectada para extrair centenas de litros de sémen de animais — porcos, galos, garanhões, ouriços, morcegos, patos — e, pode-se imaginar, levou a sua utilizadora ao orgasmo mais espectacular, virando de cabeça para baixo todo o seu ser triste e doente. Dessa comunhão entre humanos, animais e máquinas, eu fui concebida. Quando nasci, em 6 de abril de 1917, a Inglaterra tremeu."

É isto. 

Quando forem de manhã para o trabalho, para aquela reunião de trabalho chata, ou aturar um chefe ou um cliente execrável (que é um desafio constante à nossa compaixão e humanidade), pensem nisto.

É triste nem sequer tentar*. 
 

*Este meu recado vai directamente para o meu Self também, como é óbvio.


 

domingo, novembro 30, 2025

Óbidos

Óbidos, vila-natal.

Milhares de adultos e crianças tomam Óbidos de assalto neste domingo. Os sentidos são estimulados, exacerbados com toneladas de ginja, bombocas, panquecas com Nutella, vinho quente, etc, etc. A neve é falsa, feita de algodão artificial. É um enorme teatro fortificado com tiques de Disneyland. 

Entrei sozinho numa igreja onde durante cinco minutos ninguém entrou. São José com o Menino inclina a cabeça para mim como que a dizer-me:

"O que é que o jovem está aqui a fazer? Vamos fazer a coisa como deve ser. Vá lá Pedro. Medita em modos. Mas escolhe bem as tuas preces."

Ouço os sininhos das renas que vêm da rua. As pessoas continuam a caminhar em direcção aos seus sonhos natalícios. 

sábado, novembro 29, 2025

Ondas

 

 








Uma onda forte e inclemente de passado não muito distante. Agora mesmo. Não há muito a fazer nestes casos senão aceitar e integrar. Surfar a onda e tentar fluir tanto quanto possível.

"Qualquer resistência é inútil".

Ok, vamos lá, mais uma vez. Um "ad nauseum" temporário do Doutor Inconsciente ou do Herr Karma para ser resolvido e assimilado. De um lugar de caos para um lugar de gratidão e aceitação. Assim espero.

Estas sensações são agentes de mudança irreversível que abalam e sacodem até à minha fáscia. Parecem pássaros negros que me debicam a cabeça até eu aprender a lição. 

Sinto que é no sentir que está a chave do segredo. Empilhar as coisas cá dentro já deixou de fazer sentido há muitos séculos (que às vezes se concentram em minutos ou horas).

O tempo é Agora.



quinta-feira, novembro 27, 2025

Duas notas

 1. Dá-me para pensar às vezes sobre o que é o bem e o que é o mal. "Não, não sou o único". Deverá ocorrer frequentemente na mente de todos aqueles que possuem aquilo que se chama de Consciência. Acredito que a Consciência serve para iluminar o que não está claro, para dissipar o que ainda são sombras. É muito mais do que bom senso ou justiça ou boa-fé. É algo inato à condição humana. 

Mas a minha pergunta é sempre a mesma: qual é a gênese desta consciência, quem é criou e como é gerada, manifestada? Apenas por mecanismos biológicos, por neurotransmissores? (...). Ou existe uma Fonte superior que derrama em nós ondas dessa inefável Consciência?


2. Tem dias que sinto visceralmente que o meu inconsciente (com tudo o que encerra dentro de si) está a ser raspado com uma espátula divina para chegar a "um bom porto". Para chegar a um "porto superior" onde a verdade e o amor imperam sem hesitações, sem sombras (lá está) de dúvidas. 

domingo, novembro 23, 2025

Duelo

Dois homens de barba rija resolveram defrontarem-se em duelo. A honra do mais velho foi manchada pelo mais novo e só um duelo poderia resolver a questão. Não vale a pena dizer aqui o que provocou tal indignação. Não há tempo nem espaço para isso. E nem paciência, atrevo-me a dizer. 

A arma fora escolhida consensualmente. Facas. O mais novo tinha fobia a armas de fogo, recusava-se sequer tocar numa. O mais velho não se opôs; a verdade é que já via mal do olho esquerdo e a mão direita já não era o que era, tremia-lhe. Além disso, cresceram ambos na rua, sob a lei das ruas, sabiam tudo o que havia para saber em matéria de lutas com facas, punhais, adagas, navalhas, etc. 

E porque não espadas, poderá perguntar o leitor? Associamos quase sempre estes duelos de honra a espadas ou revólveres. 

Porque assim me apetece; sou eu o autor desta história. Relaxe, caro leitor. 

Os padrinhos providenciaram as melhores facas disponíveis no mercado. O local do duelo foi num jardim pouco frequentado nos arrabaldes da cidade. 

Chegara o dia. O mais velho, a parte ofendida, chegou mais cedo. Estava impaciente e queria limpar a sua honra, resolver a questão o mais rapidamente possível. 

O jardim estava deserto aquela hora. Apenas se ouviam as folhas a serem varridas ao de leve pelo vento. Esperou, esperou, voltou a esperar. Nada, ninguém. O padrinho já se tinha ido embora. Resolveu ficar, nada o demovia. A sua honra era agora a coisa mais valiosa que possuía. Antes era a sua mulher mas ela já não pertencia ao mundo dos vivos. Foi tudo muito rápido, um terrível aneurisma. Já tinha passado um ano.

Escureceu rapidamente.

De repente, caiu em si. Sentiu uma angústia enorme a crescer-lhe no peito. Deixou-se sentar no banco mais perto e começou a chorar convulsivamente. 

Outra vez. 

A sua cabeça voltou a pregar-lhe partidas. Não havia motivo real para estar ali. Foi tudo uma enorme ilusão, um encenação da sua mente. Não havia nem ofensor nem ofendido. Olhou para a faca que tinha mão. Apertou o cabo com força e sentiu uma raiva enorme. Mais lágrimas que caíam gordas sobre a terra. Lembrou-se de Linda que partiu há mais ou menos um ano. Ouviu aquilo que parecia ser o piar de uma coruja. Lançou a faca para trás dos arbustos, deu um enorme suspiro e arrastou-se até casa.