segunda-feira, setembro 29, 2025

A Fênix que renasce aos pouquinhos

Nem sempre as coisas correm como planeadas. Esta é uma das incontestáveis verdades da vida. Ou, pelo menos, deveria ser.

Vamos jantar ao nosso restaurante favorito, pedimos lombo com batatas assadas no forno e, em vez disso, servem-nos bifanas de búfalo com mostarda, ou pior, com molho de leitão; o horror.

Vamos a um "blind date" (um "encontro cego" para aqueles que não sabem suomi) e aparece um "deaf date" (muito chato, caro leitor, eu não sei linguagem gestual);

Vamos a um cocktail bar, queremos recitar uma passagem da Bíblia para impressionar os amigos e, de repente, por razões que a própria Razão desconhece, dá-nos para recitar J. L. Borges ou Danielle Steel (uma espécie de Tourette literário); 

Ou então, vamos fazer amor incondicional com a mulher dos nossos sonhos e começamos a pensar naquele talão de desconto do Minipreço cuja validade termina no dia seguinte - eu não sei quanto a vocês, mas a libido fica logo ali encravada.

Isto para dizer o quê, caro leitor? Onde é que quero chegar com estes exemplos tão concretos da vida real?

Se a vida nos parece absurda e até cruel, há, no fundo, alguma sabedoria subjacente nessa dinâmica, uma lição a aprender. Por mais que nos esforcemos, a nossa Fênix não renasce numa magnífica apoteose espontânea. Alias, não deve haver esforço. Se lhe aconteceu a si, querido leitor, considere-se bafejado pela Fortuna. 

Temos de ser pacientes e um pouco patetas e deixar a nossa Fênix renascer aos pouquinhos, a seu tempo.


sábado, setembro 27, 2025

Gabrielle

Tem alturas e profundezas que tenho vários ciclones dentro de mim. 

A Terra, o nosso planeta, a nossa casa, sente esses ciclones, esses tufões, esses furacões. Não os suprime, não os abafa, não reprime. Eventualmente, e de acordo com a ordem natural das coisas, eles dissipam-se por si.

Tenho (temos?) muito a aprender com a mãe Terra. 

(Sim, isto nunca foi um texto sobre o "tempo").

sexta-feira, setembro 26, 2025

Medos

 


 

 

 

 

 

 


 

Um amigo de um amigo de um amigo disse-me que tem dias que é assolado por medos muito bizarros e extraordinários. Esse amigo do amigo do amigo é muito aberto e não tem pudor algum em revelar estas pitadas de "inconsciente consciente" e tem até algum orgulho em ser o detentor de tantos medos e dúvidas infundadas. Alguns perdem a validade muito cedo, outros duram mais tempo - como o mel ou o Keith Richards dos Stones.

Mas chega de conversa fiada!
Eu sei que o leitor deseja saber ardentemente quais são estes medos deste sujeito intrigante. Pois aqui vão alguns:

- Medo que o coração deixe de bater.

- Medo de deixar de respirar.

- Medo de ficar louco (ele acha que este medo é exclusivo, mas está tão enganado)

- Medo de ser capaz de voar e não arriscar 

- Medo de achar que poderá não existir nesta dimensão em que nos encontramos.

- Medo de ver fantasmas e pinguins em Portugal 

- Medo de escrever "etc".

- Etc. 

Querem saber o que é que eu acho realmente?

O amigo do amigo do amigo não nos revelou, mas creio que o maior medo que este sujeito intrigante possui é este:

- Medo de amar e ser amado.

É um medo legítimo. É um medo muito humano e que nos une de certa forma. 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

quinta-feira, setembro 25, 2025

Processo inverso

Os pensamentos que correm selvagens, os pensamentos que invadem a mente. 

Proponho-vos isto: o que é que eles - os pensamentos selvagens - pensam de mim (ou de nós se quiserem fazer esse exercício comigo)? Como é que eles, os pensamentos, me vêem? 

Então é isso: vamos proceder ao contrário. Não vamos olhar para os pensamentos; vamos pôr antes os pensamentos a olharem para o Eu, fazendo perguntas. Com alguma lassidão. Com um prazer, digamos, tíbio, morno. 

Poderá soar um pouco estranho isto, caros leitores, mas fiquem aí, vai valer a pena: 

- Quem é este sujeito ao qual gostamos de lançar o nosso charme, as nossas loucas amarras?  

- Quem é este homem tão atraente, tão másculo, às vezes tão cheio de si como um pavão, mas às vezes tão doce e frágil como uma pombinha da Catrina? Sim, leram bem, como uma pombinha da Catrina.

- Onde é que ele começa e nós acabamos? 

- Como é que às vezes é tão fácil enlaçá-lo com as nossas teorias e impulsos rocambolescos e às vezes ele não quer saber de nós? 

- Porque é que conseguimos enredá-lo no nosso novelo aleatório e denso, cheio de pontas soltas, mas há alturas em que nos parece muito autónomo, muito ancorado? 

- Conseguimos pô-lo pálido e titubeante, é certo, mas, às páginas tantas (adoramos usar esta expressão), esta sua cabeça mais parece uma armadura medieval?

- Ele deseja mais do que tudo controlar-nos e sabe que não tem grandes hipóteses (pobre tonto!), cai quase sempre na nossa ratoeira e continua a fazê-lo como se quisesse parar o vento com as mãos. É caso para perguntar: o que vai naquela sua cabeça? 

Bom. Vamos fazer o que os gurus de mindfulness recomendam: quando ele aparece, vamos pô-lo numa nuvem e vê-lo  voar, a afastar-se pelo céu azul. Será que ele vai voltar para nós como nós voltamos para ele vezes sem conta?

 

 

 

 

 

quarta-feira, setembro 24, 2025

A voz da criança


 

 

 

 

 

 

 

 

 

A voz da criança

sobe devagarinho 

aos soluços,

aos trambolhões.

A voz da criança

apoia-se em cada órgão

como se estivesse

a escalar desajeitada.

A voz da criança

segura-se ao coração

que não para de bater.

(também ele quer 

ser escutado, talvez).

A voz da criança

Suspira e balbucia

"Estou aqui" 

 

Não há nada mais 

que eu possa fazer 

senão escutar

 

A voz da criança. 

 

 

 

 

 

terça-feira, setembro 23, 2025

Peça do puzzle

E por obra e graça tudo parece encaixar-se quando estás com estas pessoas que aparecem na tua vida vindas do nada. 

Do nada, não é bem assim: são seres mágicos que vivem em dimensões/planos superiores e que de vez em quando dão-te uma mãozinha, um abraço fraterno, um aperto meigo no braço. A peça do puzzle que estava perdida ou escondida no meio do sofá aparece por magia e aquilo que parecia fatalmente insolúvel compõe-se.

Os "e se's" suspendem-se, as dúvidas existenciais extinguem-se, ainda que temporariamente. 

Porquê "temporariamente"?

Porque queres controlar tudo. Queres controlar a corrente do Rio Douro. Queres conduzir as nuvens do céu como te apetece. Queres entrar e sair da VCI do Porto em cinco minutos em hora de ponta (a mais difícil das três tarefas!). 

E voltas a misturar, a remexer as peças do puzzle, porque o teu subconsciente assim te diz para fazer. Se é cansativo? Se é mais drenante que uma drenagem linfática? É claro que é. 

Mas mais uma vez surgem essas pessoas de palavra reconfortante e toque mágico para te sustentarem mais uma vez. 

Mal tu sabes que a solução do puzzle, do enigma, do algoritmo quântico estiveram sempre dentro de ti.

Por mais estereotipada e irritante que esta frase possa parecer, tu sabes que é a Verdade. 


Coração-Lua


Um coração que

flutua e muda 

Como as fases da Lua

Um coração 

Cheio

Minguante 

Novo

Crescente 

Às vezes tudo isto

Num dia

Às vezes até 

Tudo isto

Num minuto. 


quinta-feira, setembro 18, 2025

A Melodia

Há uma melodia que a minha mente gosta de tocar uma boa parte do meu dia. Uma melodia pesada, gorda e gordurosa que gosta de envolver o meu cérebro para depois entrar e ecoar dentro das suas calosidades e rugosidades.
 
É muito curioso que eu não escolho o timbre, as notas, o ritmo dessa melodia, ela apenas reproduz-se de forma aleatória, quando menos espero. Enche-me a cabeça por algumas horas do dia o que normalmente ocorre quando estou ocioso, sem fazer nada.

É uma partitura que ressuscitou recentemente de um passado algo distante. Também pode ocupar vivamente o futuro, sem qualquer tipo de permissão nem pudor. Ela assume-se confiante nas notas pesadas e ilusórias quando se apresenta dentro da minha mente.

E se me perguntarem: 
"Doce Pedro, e tu gostas dessa melodia?"

"Nem por isso", digo eu. 

"É um género que não me agrada nada", acrescento.

Mas aqui é que "a porca torce o rabo" como diz o bom povo: eu não posso gostar nem "desgostar" desta velha e repetitiva melodia porque ela precisa de mim para sobreviver, para ecoar aquelas notas pesadas e pesarosas.

Na verdade, e para vos ser honesto, esta música já aborrece aqui o doce Pedrinho. Já é hora de ela receber carta de despejo.

A música, seja ela boa ou má, a fim de ser reproduzida, tem de existir alguém para o fazer, um maestro ou instrumentista. Ou, por outra perspectiva, tem de haver alguém que deseje escutá-la.